Ou, sobre escrita e performance
Sinto que comecei a alinhavar uma tessitura do que poderia ser o começo de reflexões do que se passou no \perfura_ateliê de performance. Ênfase: alinhavar o que poderia ser o começo. Como acontece em diálogos ao vivo, muitas vezes, uma conversa é apenas pano pra manga de conversas futuras e o assunto não se encerra tão cedo ou tão fácil. A gente sempre retoma, e o assunto, quando faz parte importante de nossas vidas – afetos, pesquisas e fazeres –, está sempre na pauta do dia.
Um dos assuntos que mais retornou nas atividades dialógicas do \perfura foi a respeito de registro, memória e rastro de performance. Muitos brincaram com a Luiza Palhares, fotógrafa do evento, dizendo que ela já tinha uma pesquisa de mestrado pronta. Ela mesma resume o assunto com a frase lapidar: "Fotografar performance é como vestir os sapatos de outro". A melhor forma de deixar uma conversa em aberto é resumi-la numa frase lapidar, que suscita ainda mais questões.
Tratamos constantemente da relação limiar entre performance e fotografia de performance: a relação do artista com a fotografia, a expectativa da fotografia em relação ao trabalho, a presença do fotógrafo durante a performance, a relação do público com a fotografia de performance, a fotografia como uma das memórias possíveis da performance, a fotografia como registro material de uma ação que é por si só efêmera etc.
Mas sobre minha colcha de retalhos de impressões e começos de reflexões, sinto que se me fosse pedido daqui três meses me debruçar sobre as anotações e escrever um artigo, um relato ou um texto expandido, muita coisa seria amadurecida. Muito do que ficou registrado apenas mentalmente teria a oportunidade de se sedimentar e cair no papel. Com o tempo que una escrita reflexiva demanda.
Experimentei muitos desafios. Como, por exemplo, sair escrevendo. Muitas vezes, a maioria delas, escrevi sem me deter sobre o texto e em alguns casos sem qualquer tempo para retornar a eles. Experimentei o desafio de fazer da escrita algo mais imediato. O que me suscitou questões sobre o que é uma escrita reflexiva – de como registro e memória de um evento – de performance.
Como alguém que se dedica à teoria filosófica e como alguém que se dedica à performance como tema de investigação e à escrita como prática profissional, sinto que exercitei um pensamento sobre a incapacidade de escrever. Os temas que mais me pegaram como desafio diário da escrita era o tempo necessário para puxar un assunto da memória, pensar criticamente digitando, retomando, apagando, contemplando o vazio, se perdendo em pensamento associativos, revendo anotações antigas. Escrever sem tempo de ponderar ou consultar. Escrever em meio à atualizações e notificações do blog e do facebook. Escrever entre uma ação e outra. Escrever estando disponível no espaço da galeria suscetível a múltiplos atravessamentos. Escrever sendo interrompida por urgências e presenças também disponíveis para o diálogo. Escrever na impossibilidade de escrever. Escrever diante do desafio da dificuldade em se concentrar na escrita – que habituamos a ser um tempo silencioso, nós com nossos próprios pensamentos, sendo escutados, elaborados e ruminados num espaço ou tempo de isolamento e introspecção.
O tempo da escrita do \perfura foi o tempo de uma escrita imediata, imediata como são as impressões e sensações sucessivas. Uma escrita perfurada.
Mas a escrita sobre performance não precisa ser imediata. Pode ser um compartilhamento de experiência. Pode ser uma abertura para viver e pensar junto, para sentir e atravessar junto. Por outro lado, por mais que a performance seja essa linguagem papo reto – venha compartilhar comigo –, mais sensível do que analiticamente interpretável, ela demanda um tempo de respiro, para que o que foi sentido possa ser percebido com maior nitidez e neutralidade. É como se tivéssemos tido uma experiência bem intensa e com o tempo pudesse absorvê-la ao revisita-la com distanciamento. Não se trata de um distanciamento afoito em produzir sentido/significado hermenêutico/intelectual, mão no queixo analítico, mas de digerir uma vivência transformando numa experiência mais elaborada, mais digerida, como se apropriássemos do que nos é próprio. O tempo da reflexão meditativa, do eu consigo, a introspecção silenciosa que deixa o pensamento se esclarecer sobre o que importa, ou sobre o que ainda precisa ou deseja ser revisitado, pela reverberação que causa em nós, pela permanência de estar ainda conosco, à flor da pele.
Que possamos então com o tempo permanecer atentos ao que importa, às sedimentações de tudo o que o \perfura nos proporcionou em termos de experiências, provocações, amadurecimentos, trocas e percepções.
Continuemos