quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Escuta o aberto

Ao longo dessas seis semanas de \perfura foi interessante notar que o que mais aconteceu durante as diferentes atividades da programação foi os artistas trazerem o que para eles é a inquietação mais recente, a faceta de suas identidades mais atual, ou ainda o assunto ou tema que mais lhe atiçam nos últimos dias, semanas ou meses.

Durante a abertura do \perfura_ateliê de performance, escutei alguns artistas se perguntando "o que exatamente era para ser feito". É interessante notar essa oposição entre a ausência de um "tem que fazer" e a presença insistente da abertura, isto é, do "faça o que quiser". Era um convite para o aberto. O aberto muitas vezes assusta. As nomenclaturas davam algum recorte, mas mesmo assim, recortes amplos sujeitos a subversões constantes. De toda forma, fica difícil pensar em subversão quando a regra é frouxa e muito permissiva.

Somos corpos porosos e um espaço poroso. Isso foi dito com frequência nos primeiros dias e semanas. E de fato, essa porosidade e esse perfuramento escancarado é vivido como uma reafirmação da abertura. Não é raro escutar durante as atividades algum comentário sobre o coragem que se tem quando o artista/pesquisador convidado encara a oportunidade de abertura e se apresenta no lugar do experimento, de algo ainda a ser testado, de uma postura "não sei bem ainda, mas estou aqui", acompanhado do convite implícito "vamos juntos?"

É um espaço de aprendizado, sobretudo.

Em sua provocação, Marco Paulo Rolla disse uma sequência de frase que acabou gerando uma ambiguidade interessante. "Eu não sei. Vou explicar para vocês entenderem". Ao que remendei: "Vou explicar o que não sei para ver se vocês entendem" – e teríamos ali a oportunidade de entendemos todos juntos algo que ainda não sabemos.

Esse potência do “eu não sei” conjugado com o espaço de um ateliê aberto numa galeria de arte de uma instituição como o Sesc Palladium é um senhor risco assumido. Uma declaração carimbada em três vias – na dimensão sutil, óbvio – de coragem. Coragem não somente em estar nu no sentido do exposto e sem pele, mas uma coragem na confiança de um diálogo que a cada dia se constrói de uma forma, visto que somos muitos que passam pelo local e que cada dia é um humor que vigora, que dá a tonalidade do dia e da programação. Somos bichos humanos, cheios de humores – vagos, oscilantes. Mesmo assim, estamos juntos em compartilhar o desejo desse não saber sobre processos criativos, as não certezas dos caminhos a seguir, as inquietações sobre os como fazer aqui agora, por onde fluir para que o fluxo seja uma reverberação que prospere por inércia de movimento próprio. O impulso que gera combustível em seu próprio desdobrar. Talvez a confiança seja essa faísca constante a produzir microexplosões que façam com que o impulso se prolongue. Que se propague adiante em outros eus, em outros contextos, em outros processos criativos.

Nesse processo de escutar o aberto há, desconfio, uma aposta no desapego de si, dos próprios sins/não, certos/errados, pode/não pode.

É preciso muita coragem para descascar o ego do lugar de saber, do lugar de quem carrega uma experiência comprovada. É preciso coragem para escutar o aberto também no estado do imprevisto, do fugidio, do "pode ser que seja um fiasco", "pode ser que fracassemos". Se despir do lugar confortável do já sabido, se despir da segurança do conhecido e se lançar ao desconhecido - no teste das possibilidades que é estar em exposição, não saber, como dizia Pessoa, o papel a desempenhar – enquanto todos fingem saber –, e ainda sim estar lá, disponível para a troca, para a escuta, para construir algo juntos. Que pode ser que perdure. Pode ser que não. Numa dessas semanas, cheguei em casa de uma atividade e escrevi no meu bloco: "o desejo é combustível" e depois "o desejo não é garantia".


Desconfio que nesse lugar da criação e da experiência com a arte o que a gente quer não é garantias, mas coragem. Para testar, para se lançar ao desconhecido, para escutar atento o aberto.

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