sábado, 4 de fevereiro de 2017

O que não escrevi

Nesse clima de última semana, me bateu uma vontade de listar os "nãos", num afã de revisitar expectativas e rever o que não deu tempo.

Por exemplo, numa conversa solta e despretensiosa, eu e Clarice Lacerda pensamos numa ação performática a ser realizada em algum dos sarau aberto de performance. Os detalhes foram todos pensados. Só precisávamos separar o tempo e aparecer para fazer. O fluxo dos eventos às vezes nos impede de interromper urgências.

Por que afinal falar dos nãos, quando tantas coisas passaram por aqui?

Um dia me peguei me perguntando: como eleger uma performance e decidir me concentrar sobre ela, e falar da minha experiência e tomar tempo para refletir, não só sobre como a percebi, mas sobre como o artista a realizou, as condições específicas no dia designado e na galeria, e tomar mais tempo ainda para conversar com o artista e saber como foi a experiência dele, as expectativas e as percepções antes, durante e depois. Interromper o fluxo do tempo de uma programação intensa às vezes é uma tarefa de nadar contra a corrente, sendo que as demais demandas de atenção te puxam de volta ao fluxo de eventos. É preciso estar disponível e prestar atenção.

Tantas pessoas passaram por aqui. E tantas delas, senti, para as quais poderia ter dedicado um pouco mais de tempo de conversa. Eu, jornalista, tão curiosa sobre as pessoas e suas escolhas.

Falar de "nãos" é também falar de escolhas.

O que não escrevi. Com o que não me frustrei. O que não me pegou ou não me atravessou. Os textos que elaborei mentalmente mas não transcrevi e acabou passando. O timing que perdi entre uma atividade e outra, entre um texto e outro.

Ao mesmo tempo, num duplo das polaridades, o que se conquista com os “sins” de um espaço aberto de ateliê? Como o projeto – agora concretizado e quase finalizado – reverbera na vida dos artistas da cidade que trabalham com performance.

Revirando a moeda, é possível pensar os "sins" como espaços abertos. Que experiência compartilhamos quando nos colocando disponíveis para a escuta – de uma conversa ensaísta, de um artista provocador, de um disseminário. Qual a potência reverberadora de uma abertura? Como podemos prolongá-la por meio de outras aberturas, como, por exemplo, diálogos, questionamentos, compartilhamentos de inquietações, alegrias e entusiasmos, em formas de escritas, desenhos e novas proposições?

Os “sins” reverberam, se prolongam num tempo, assim como os “nãos”. Os “nãos” aparecem mais imediato, como desejo incubado, como aprendizado a ser reconhecido, como demanda para uma próxima oportunidade.

No par de polaridades, não existe bom ou ruim, certo ou rápido. Como ensinam os mestres zen, é preciso apenas desenvolver a capacidade de presença a ponto de fazer o que é preciso fazer a cada instante de forma desapegada. Simplesmente comer, quando é preciso comer. Lavar a louça, se locomover, cozinhar... Estar como que entregue a cada ação a ponto de se dissolver nela. Se confundir com o fluxo do evento a ponto de dissolver o próprio ego de suas pessoalidades, desejos e projetos. Nesse processo, desconfio, é preciso confiança para se deixar-ser. No Sat Nam Rasayan, um método de meditação, um comando chave que ajuda os praticantes é: "permitir". Permitir, permitir, permitir. Até que você dissolva a tensão (seja qual forma) numa entrega ao espaço e tempo presente. E isso não é o que entendemos como presença quando desejamos elogiar o tônus da concentração e da entrega de um performer, dançarino ou ator à realização de uma ação?

Além de confiança, é preciso entender os limites do tempo e do espaço. E entender que no fluxo das permissões e do flanar com os eventos, certas urgências não cabem numa agenda dos eventos. Entender a natureza das urgências num tempo tão imediato e perfurado como o nosso é um aprendizado e tanto.

Eis aí uma contradição: como fluir no fluxo dos eventos e não ser fisgado pelo excesso de demandas. Sendo finito, é preciso reconhecer os limites. Mesmo dentro da ampla possibilidade do sim e da abertura, dizer um não, fazer a breve escolha de permitir fluir na bifurcação de uma decisão.

Essa última frase, para relembrar Wyslawa, remete a uma conversa que tivemos, se não me engano durante o conversas ensaístas com Luiz Carlos Garrocho, que remetia ainda a uma palestra da Suely Rolnik sobre a obra "Caminhando junto", da Lygia Clark. Na perspectiva de Rolnik, a obra de Lygia, ao se propor como um cortar constante de uma fita de moebius, provocava a cada volta com a tesoura um momento de tensão na tomada de decisão sobre manter ou interromper o fluxo de instabilidade e novas decisões (bifurcações). A cada nova bifurcação mantinha-se em aberto novos momentos de crise e tensões, pois a cada nova volta retornaria a possibilidade de interromper a obra ou prossegui-la até o seu limite.

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