Me peguei pensando desde as primeiras
semanas de perfura sobre como é difícil parar o fluxo dos acontecimentos do
ateliê, eleger um trabalho de um artista e me debruçar reflexivamente sobre
ele: conversar com o artista, resgatar na memória minha experiência, pensar e
digerir como a performance me afetou e como reverberou em mim.
Muitas vezes as obras e performances
reverberam em nós mesmo sem nosso controle consciente. É o inconsciente e essa
mente vasta que temos – que nunca para de funcionar – que trabalha com associações
de sensações, percepções e ideias e traz de volta algo vivido. Caminho pela
cidade e algo retorna. Tomo banho e sorrio com a lembrança inadvertida de uma
ação, performance ou conversa que me afetou, que me deslocou, que me
surpreendeu.
Nessa sexta semana, talvez porque tenha
acompanhado mais de perto a pré-produção do trabalho, me peguei pensando sobre
as diversas camadas de sentido do trabalho da Morgana Mafra, o “Lisêncio”, nome
escrito em guilagem de camaco (típico de quem é de Itabira, quase uma piada
interna).
Morgana construiu uma bola de cimento de
um metro de diâmetro e interagiu com ela pela cidade, num trecho próximo ao
Sesc Palladium, até entrar no espaço da galeria. O movimento não era trazer a
bola, mas empurrá-la numa relação de tensão e conflito, de esfolamento e
contaminação – ao final da ação a performer estava toda coberta de pó de
cimento. A bola em alguns momentos se esfarelou, deixando rastros de pó e
pedaços de cimento pelo caminho.
Dentro da bola, havia o som de máquinas de
mineração escavando a terra. Não deixa de ser interessante pensar que a
dimensão de silêncio numa cidade como Itabira – e tantas outras em Minas Gerais
(um nome que já revela o destino de uma região devastada) – é o ruído
incessante das mineradoras, num trabalho ininterrupto e incansável de destruir
o solo. Trabalho incansável e ininterrupto é também o de Sísifo, empurrado
montanha acima uma pedra enorme. Uma experiência do absurdo, de acordo com Albert
Camus. No trabalho de Morgana, um silêncio ruidoso e denso – perturbador.
Retomando ao início deste texto, quando
considerei escrever sobre alguns trabalhos, pensei em encontrar temas ou
elementos que estabelecem diálogos entre uma ação e outra. O difícil da tarefa
aqui é a economia do tempo versus a dinâmica da reflexão, da experiência e da
memória. Tantos trabalhos dialogam entre si, a partir de tantos elementos. Um
deles, sobre o qual já escrevi, foi a voz, no trabalho da Flora Maurício e do
Inácio Mariani.
Para este texto, pensei no silêncio. E não
que eu tenha me colocado na tarefa de elucubrar conceitos e construir teorias –
estou aqui compartilhando percepções e experiências ainda pouco refletidas e
sedimentadas. Mas enfim, me lembrei do silêncio também denso, plasticamente
belo e poético da ação “Entre a vigília e o sono” de Janaíba Tábula. Uma ação
tão simples e ao mesmo tempo que suscita tantas associações de percepções e
imagens. O que me chamou a atenção foi o instante em que a performer se deitou
sobre a tinta branca da banheira. Foi um momento de suspensão. Foi possível –
pelo menos essa foi a minha experiência – sentir a viscosidade da tinta e a sua
temperatura. Aposto, tendo a reação da perfomer como base, de que era bem
gelada. Sensação semelhante àquele momento em que, tomando um banho gelado pela
manhã, a água fria toca o corpo ainda adormecido, e a respiração se altera
instantaneamente, até que o corpo se adapte a nova temperatura. Um pequeno
momento de estresse, seguido de uma sensação relaxante e revigorante. Na ação
de Janaína, uma pequena tensão, seguida de uma imagem plástica que remetia a
serenidade e também a santidade e morte, num ambiente bem sublimado e suave.
Foi interessante nessa ação lenta e
delicada, ver o corpo de Janaina desaparecer no branco – da tinta, da banheira,
do espaço da galeria. Um apagamento poético.
O silêncio, já dizia Cage, não existe. No
entanto, o experimentamos em diversas facetas, seja na suspensão ou num ruído
perturbador e abafado. O silêncio como deslocamento é também um mecanismo da
experiência estética, seja como disposição existencial para o seu acontecer e
para a percepção de uma obra de arte, seja como elemento da obra de arte.
Fotos: Luiza Palhares
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