quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Reverbere o silêncio

Me peguei pensando desde as primeiras semanas de perfura sobre como é difícil parar o fluxo dos acontecimentos do ateliê, eleger um trabalho de um artista e me debruçar reflexivamente sobre ele: conversar com o artista, resgatar na memória minha experiência, pensar e digerir como a performance me afetou e como reverberou em mim.

Muitas vezes as obras e performances reverberam em nós mesmo sem nosso controle consciente. É o inconsciente e essa mente vasta que temos – que nunca para de funcionar – que trabalha com associações de sensações, percepções e ideias e traz de volta algo vivido. Caminho pela cidade e algo retorna. Tomo banho e sorrio com a lembrança inadvertida de uma ação, performance ou conversa que me afetou, que me deslocou, que me surpreendeu.

Nessa sexta semana, talvez porque tenha acompanhado mais de perto a pré-produção do trabalho, me peguei pensando sobre as diversas camadas de sentido do trabalho da Morgana Mafra, o “Lisêncio”, nome escrito em guilagem de camaco (típico de quem é de Itabira, quase uma piada interna).

Morgana construiu uma bola de cimento de um metro de diâmetro e interagiu com ela pela cidade, num trecho próximo ao Sesc Palladium, até entrar no espaço da galeria. O movimento não era trazer a bola, mas empurrá-la numa relação de tensão e conflito, de esfolamento e contaminação – ao final da ação a performer estava toda coberta de pó de cimento. A bola em alguns momentos se esfarelou, deixando rastros de pó e pedaços de cimento pelo caminho.

Dentro da bola, havia o som de máquinas de mineração escavando a terra. Não deixa de ser interessante pensar que a dimensão de silêncio numa cidade como Itabira – e tantas outras em Minas Gerais (um nome que já revela o destino de uma região devastada) – é o ruído incessante das mineradoras, num trabalho ininterrupto e incansável de destruir o solo. Trabalho incansável e ininterrupto é também o de Sísifo, empurrado montanha acima uma pedra enorme. Uma experiência do absurdo, de acordo com Albert Camus. No trabalho de Morgana, um silêncio ruidoso e denso – perturbador.

Retomando ao início deste texto, quando considerei escrever sobre alguns trabalhos, pensei em encontrar temas ou elementos que estabelecem diálogos entre uma ação e outra. O difícil da tarefa aqui é a economia do tempo versus a dinâmica da reflexão, da experiência e da memória. Tantos trabalhos dialogam entre si, a partir de tantos elementos. Um deles, sobre o qual já escrevi, foi a voz, no trabalho da Flora Maurício e do Inácio Mariani.

Para este texto, pensei no silêncio. E não que eu tenha me colocado na tarefa de elucubrar conceitos e construir teorias – estou aqui compartilhando percepções e experiências ainda pouco refletidas e sedimentadas. Mas enfim, me lembrei do silêncio também denso, plasticamente belo e poético da ação “Entre a vigília e o sono” de Janaíba Tábula. Uma ação tão simples e ao mesmo tempo que suscita tantas associações de percepções e imagens. O que me chamou a atenção foi o instante em que a performer se deitou sobre a tinta branca da banheira. Foi um momento de suspensão. Foi possível – pelo menos essa foi a minha experiência – sentir a viscosidade da tinta e a sua temperatura. Aposto, tendo a reação da perfomer como base, de que era bem gelada. Sensação semelhante àquele momento em que, tomando um banho gelado pela manhã, a água fria toca o corpo ainda adormecido, e a respiração se altera instantaneamente, até que o corpo se adapte a nova temperatura. Um pequeno momento de estresse, seguido de uma sensação relaxante e revigorante. Na ação de Janaína, uma pequena tensão, seguida de uma imagem plástica que remetia a serenidade e também a santidade e morte, num ambiente bem sublimado e suave.

Foi interessante nessa ação lenta e delicada, ver o corpo de Janaina desaparecer no branco – da tinta, da banheira, do espaço da galeria. Um apagamento poético.


O silêncio, já dizia Cage, não existe. No entanto, o experimentamos em diversas facetas, seja na suspensão ou num ruído perturbador e abafado. O silêncio como deslocamento é também um mecanismo da experiência estética, seja como disposição existencial para o seu acontecer e para a percepção de uma obra de arte, seja como elemento da obra de arte.




Fotos: Luiza Palhares

Nenhum comentário:

Postar um comentário