Confira a seguir texto compartilhado por Elisa Belém em sua participação no Conversas Ensaísticas, no dia 13 de dezembro.
O QUE TENHO A DIZER NO MOMENTO SOBRE PERFORMANCE
Elisa Belém
“Que importa o sentido se tudo vibra?” (Alice Ruiz)
Em 2014, defendi a tese de doutorado Práticas para a plenitude do corpo – aproximações entre performance, autoria e cura, no Instituto de Artes da UNICAMP. A tese apresenta uma análise do trabalho das artistas Lygia Clark, Dudude Herrmann e do diretor teatral Enrique Diaz, a partir do conceito Pulsão de Ficção.
O conceito Pulsão de Ficção, cunhado por Sperber (2009) discute a ocorrência de uma possível necessidade inata de criar, a partir de uma investigação sobre a oralidade e as formas simples na literatura – contos de fadas, mitos, casos, causos, adivinha, fábula, legenda e saga. Na elaboração do conceito, Sperber defende a existência dos “universais” ou “saberes básicos”: simbolização, efabulação e imaginário. E indica que, esses elementos, comuns a todas as culturas e seres humanos, possibilitam a comunicação.
Parte-se do pressuposto de que a criança utiliza os recursos que possuí para criar, seja a linguagem falada ou a encenação corporal, a fim de elaborar emoções profundas e eventos vividos. Dessa forma, o imaginário se expressa mediante um conjunto de recursos, sendo o lúdico o mais forte e apresentando-se como um jogo cênico. A ação do jogo corresponde à aquilo que leva a criança ou mesmo o adulto a elaborar eventos vividos. O recurso à ficção conduz ao entendimento, apreensão do conhecimento, repetição e ressignificação possibilitando a mudança de padrões emocionais. O ato de criar é entendido como algo que pode conduzir à superação. Essa força criativa mostra que há maneiras próprias de produzir conhecimento por meio do vivido, ou seja, da experiência.
Conforme Sperber (2009) indica, essa pulsão, que está à disposição de todo e qualquer ser humano, deve também ser trabalhada. O estímulo à Pulsão de Ficção tem como objetivo despertar aquilo que as circunstâncias familiares, históricas, sociais e culturais calam ou reprimem. Isso pode ser feito, de acordo com Sperber, ao estimular-se a autoria, por meio da criação de textos literários nas escolas de ensino básico e médio, por exemplo. O intuito é suspender a censura externa ou interna que restringe a produção. A Pulsão de Ficção ou artística é, portanto, pulsão de expressão ficcional e, segundo Sperber, pode se dar por meio de quaisquer recursos – da palavra à imagem bi e tridimensional, o som, o movimento, a cor ou a forma.
Partindo dessa conceituação para a abordagem da questão da autoria, acredito que esta, uma vez estimulada, pode gerar uma ampla gama de expressões, discursos e linguagens. No devir da criação, o indivíduo revisita a si mesmo e ao outro, podendo elaborar suas experiências de vida, em prol de um “melhor contato afetivo com a realidade” ou um “desbloqueio de nossa relação com o mundo” (Brett. In: WANDERLEY, 2002, p. 9). Seguindo a hipótese de que a criação pode ser uma necessidade, noto que o potencial para expressão inerente a todos os indivíduos é o que possibilita uma existência mais plena e alegre. Nesse sentido, criar corresponde à reinventar a si e as realidades ao redor. Creio que seja válido o estímulo à Pulsão de Ficção não só para a criação de narrativas e textos literários, mas também para a criação de obras no campo das artes visuais e cênicas, em todas as idades do ser humano. Nos fenômenos da dança, do teatro e da performance, o eixo central para essa reinvenção é o corpo. Trabalhar sobre o potencial de movimentação do corpo e sobre a possibilidade de criar imagens no espaço é um modo de transformar a si, de investigar a percepção e a expressividade.
A ideia de autoria e de superação, por meio da elaboração de eventos vividos e emoções profundas, pressupõe o desejo e a busca pela liberdade. A Pulsão de Ficção, uma vez estimulada, pode levar a processos de criação autorais em todas as áreas artísticas. A criação nas artes pode ser entendida como um trabalho sobre si mesmo, levando a desfazer hábitos de movimento, de pensamento e sentimento. O artista, ao utilizar suas próprias experiências de vida e visões de mundo como material para a criação, pode produzir obras autorais. Conforme entendo, a autoria corresponde a um ato de recuperar a própria voz. Muitos foram e são silenciados – por outros, pelas circunstâncias ou por si mesmos, em reação às suas realidades externas. O silenciamento, no entanto, pode corresponder a um processo de desqualificação do sujeito. Recuperar a voz por meio da criação é um meio de trazer à tona a potência de vida, as particularidades de cada um diante do mundo. Ao assumir a própria autoria, se dá a ocorrência da ação de renomear e dar sentido a eventos alegres ou dolorosos e de renovar a capacidade de esperança, criando a partir de emoções e percepções profundas.
A relação que proponho entre autoria e criação nas artes visuais ou cênicas corresponde às nuances presentes no ato da criação, referidas e elencadas a partir da minha interpretação do conceito Pulsão de Ficção. Muitas questões podem ser desdobradas a partir da relação entre performance, autoria e cura. Passei a considerar também outras duas palavras ao falar sobre o tema – vida e saúde, principalmente se considerarmos a ideia de vida em conjunto à uma certa noção de saúde. Essas duas palavras substituem também o termo cura, tendo em vista uma série de dificuldades implicadas pelo tema. Isto posto, levanto a questão do que poderia instaurar, a partir dos processos criativos e da composição da cena ou do ato da performance, aquilo que Rolnik nomeou como “uma espécie de ‘saúde poética’” (ROLNIK, 2005, p. 6), ou seja, uma “capacidade de relacionar-se com o mundo de maneira criativa” (Ibidem).Tais ideias foram por mim desenvolvidas em artigos que serão publicados em breve.
Referências bibliográficas
ROLNIK, Suely. Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia (2005).Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/suely%20rolnik.htm>. Acesso em: 01 set. 2015.
SPERBER, Suzi. Ficção e Razão – uma retomada das formas simples. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2009.
VIEIRA, Elisa Martins Belém. Práticas para a plenitude do corpo – aproximações entre performance, autoria e cura. 2014. 283f. Tese (Doutorado em Artes da Cena) – Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas.
WANDERLEY, Lula. O dragão pousou no espaço – arte contemporânea, sofrimento psíquico e o Objeto Relacional de Lygia Clark. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
Foto: Luiza Palhares
Foto: Luiza Palhares
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